A
Educação pela Pedra
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
João
Cabral de Melo Neto
Publicado no livro A educação pela pedra (1966).
A escrita
A folha de pele alva
cativa-me...
embriaga-me...
penetra-me n'alma.
Pego de um lápis, se por
agora,
a fim de acariciá-la,
dentro de uma simbiose
liamada de prazer.
Sinto frio, calor, suo
demasiadamente
vendo cada sílaba ser
contorneada.
Orgasmos literários vão e
vêm...
Como quem morre, escrevo
versos.
Caio
Valeriote
A FOGUEIRA
Em dezembro, sonhar com
janeiro,
em janeiro pensar:
fevereiro
vai ser bem diferente
A semana inteira chocar o
sábado,
no sábado, esperar o
domingo.
No domingo dizer: no
outro, quem sabe?
O tempo todo apoiar-se na
bengala
da ilusão, a preferir a
cegueira
à visão do abismo.
Cansei-me da farsa.
Fiz uma fogueira, joguei
a esperança dentro dela
e arregalei os olhos.
Astrid Cabral
O tempo nos tece uma veste
E muito custa esse imposto
Pois lento nos dá outro susto
Gastou-se mais um agosto
Posto que vasto é o tempo
E visto que nos é imposto
Viver só um tempo sucinto
Numa sina à contragosto
E a soma insana dos anos
Aos poucos sela um desgosto
No raso espaço do espelho
O tempo esculpe seu rosto
Tchello d`Barros
Além
de mim
Quero
apenas
Além de mim, quero apenas
essa tranqüilidade de campos de flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.
Além
de mim
– e entre mim e meu deserto –
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto de meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha.
Olga Savary
Ali
ali
só
ali
se
se alice
ali se visse
quanto alice viu
e não disse
se ali ali
se dissesse
quanta palavra
veio e não desce
ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece
Paulo
Leminski
Amanhã
meu corpo dói
se
não é de danças e de bênçãos
que
eu o cubro
Amanhã
as ondas devolvem
o
que sem sentir com o dentro
eu
mergulhei
Amanhã
o coração regurgita
onde
eu pisei
sem
caber todo o meu ser
Clara Baccarin
Amavisse
Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.
Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.
Hida
Hilst
Minha terra é brasilíada, brasidílica, brasilinda! Minha terra tem mais que palmeiras, é Pindoramagia! A descoberta desse Brasil é diária. A conquista, também. Aqui tem pau-brasil, pau brasino de brasido e brazedo: brasilivre de orlas paradisíacas, areias que guardam pegadas de curipiras e matas que são moradas de mapinguarís. Aqui tudo que se planta dá e recebe, a dar com o pau. É lugar de flora melíflua, flores ebúrneas, pétalas ebóreas, inflorescências arborescentes. Olores de eflúvios oníricos e semeadura de revolução que germina em conquistas do povo, da pólis, de todos. A esperança está na brisa, em flagrante fragrância que poliniza, poesia que prolifera, verve que poliflora. Bem-vindos a esta nação de ritos: de Torés transcendentes, de Cruzes redentoras, de Terreiros libertários.
II - ENTRE PASÁRGADA E ILHA DE UTOPIA
Uma criança desenha a palavra amor na areia da praia de Itamaracá. As sombras das casas nos povoados e vilas de nosso Brasil profundo, crescem no poente, formando palavras como: recanto, idílio e paraíso. Óbidos, Blumenau e Olinda. É nesse costado que o Sol nascente encontra primeiro a América menos americana das Américas. Essa terra tem dono sim senhor: há tem perímetros e pontos cardeais, mas as fronteiras são de abraços, brindes e sorrisos. Brasilíada, daqui e de lá: do Arroio do Chuí, no Sul, ao Monte Caburaí no Norte; da Nascente do Rio Moa, no Oeste, à Ponta do Seixas, no Nordeste. Aqui a bússola da liberdade se desenha no ir e vir da rosa dos ventos elíseos. Territórios de florestas e floreiras, matas e clareiras, ilhas de praia, areia e onda: tem surf na pororoca e mergulho no Pantanal. Escalada no Monte Roraima e neve em Brunópolis. Desde navegações pelo Rio Madeira a jornadas pelos Caminhos do Peaberú. Nossos rios são ruas de ontens e amanhãs: fluem no dia de hoje em nossa parcela planetária. Os afluentes do Rio Amazonas tingem o sangue debaixo da derme. O cume do Monte Roraima tange a tessitura de nossa pela. Os cimos da Serra do Rio do Rastro plasmam nosso corpo que dança e luta. Essa terra evoca batalhas por independências, conquistada com braço forte e justiça social como norte. Seguem velozes os voos das flechas de Tiaraju, Cunhambebe e Arariboia. Nosso ir e vir é tal, que chega a ser continental. Trem, nem sempre tem, mas sempre tem quem te quer bem!
III - MINHA CASA É SEU MUNDO E MINHA GENTE É SEU POVO
Terra Papagalli: Somos de Pindorama. Abya Yala é aqui também. Dos ancestrais aos originários, dos que vieram antes de outros quadrantes, depois de tudo, somos brasilianos de terra nova em novo mundo. Uma icamiaba virgem, esculpe em jade, um novo Muiraquitã. Nossa esperança vibra à flor do pelo, e nossa pele é tanta, de tinta retinta, preta, parda, morena, indígena, branca, de todos os tons: nossa mescla tem matizes e matrizes misturadas na paleta da vida. A genética plural que nos modela, cromossômica e helicoidal, constrói em uníssono um vocábulo rizomático: equidade na alteridade e diversidade na democracia. Na orla de Coruripe, o caiçara e o gringo singram na mesma jangada. Em Floripa, o nativo e o universal bebem juntos a cachacinha de alambique em cumbuca de argila. No Cerrado, o mestiço e o cosmopolita lançam a mesma rede no Lago Paranoá. Nossa lei se chama Paz. Nossa bandeira se chama Amor. Nosso hino é alento e acalanto. Nosso corpo tem cicatrizes mas nossa alma é de festa. Por aqui, somo um povo manso: tacape na opressão, borduna no autoritarismo e zarabatana no fascismo. Em nosso lugar de fala, de reza e de vida, fazemos contas com miçangas e terabytes: Eu + tu = nós. Nós + eles = minha taba é local, nossa aldeia é global. Aqui a soma é sempre resulta sempre mais: sempre cabe mais um. Nessa equação, mais que dividir o bolo-de-rolo, multiplica-se o vinho, e também o café e ainda o tacacá. A coragem, rebeldia e subversão nos constituíram com as lutas por liberdade, desde Zumbi, Calabar, Anita Garibaldi, Olga & Prestes, Lamarca, Marighella, Niemayer. Forças que ainda reverberam em todos nós, por todos nós! Aos forasteiros imantados pela magia daqui, nosso grito primal: vinde e somai!
IV - PLURALIDADES DA ARTE
Brasil de vasto mapa, mapeadas a memória, a tradição e o folclore. como arte vivaz na contemporaneidade. Na palavra espontânea do repentista, as entrelinhas de um tratado filosófico. No movimento circular da dançarina de Lundu, a lição do sentido da vida. No semblante do brincante de Boi Bumbá, a ideologia que contagia com magia. A norma culta e a fala dita erudita, brindam abraçadas com os sotaques diversos e os falares populares dessa gente que tem o que dizer e sabe o que quer. Toda filosofia estética cabe no olho que hoje sorriu ao avistar uma canoa no Rio Acre. Toda teoria poética cabe na voz do gaudério que entoa uma milonga na invernada. Toda ode antropológica cabe na dança do Xokleng que invoca seus ancestrais. A arte visual pulsa em batimentos inefáveis: seja na ruptura disruptiva das cores de um cocar em Parintins, seja nas nuances frias de uma rede tecida manualmente em Fortaleza, ou ainda nas tonalidades quentes do bordado em um vestido da Oktoberfest. Nesse país, tem rabo-de-arraia na Capoeira de Angola em Itaparica. Tem ginete com potro chucro corcoveando em Barretos. Tem peregrinos que vem de longe ao Círio de Nazaré. Além da lenda: somos imersos em lindas lendas, contos curtos e causos tantos. Yes, nós temos Carnaval. Aqui carnavalizamos a vida, invertemos os poderes instituídos e trocamos os papeis sociais. Sempre com ginga no pé, com ritmo na bateria e muita arte na fantasia.
V - DEVORAR LINGUAGENS PARA REGURGITAR CULTURA
Nesse lugar em que o Atlântico nos encontra, em que os ventos andinos nos alcançam, somos a herança das revoluções da América do Sol, do Sul do orbe, do céu mais azul. Somos entretecidos em revoluções que nos formam e entrelaçados em utopias que nos transformam. Seguimos antropofágicos-antropomágicos. Aqui, ainda devora-se Sardinha, e com tempeiro mineiro. Ao digerirmos sabores da terra, deglutirmos saberes do mundo. Sim: ainda bebemos cauim. Degusta-se axé de fala, graspa, garapa e chimarrão. Nossa fé mais profunda, oblitera as sanhas oligarcas: antigos impérios patriarcais, clãs opressores e dinastias totalitárias aqui cedem lugar a solidariedades comunitárias, canções conjuntas e partilhas do pão entre iguais. Ainda há espaço para desideratos: há sonhos coletivos que desenham-se nas redes do pescador, há desejos amorosos no rasto da canoa, há mistério no tapete de estrelinhas alvacentas que o luar tece sobre a foz do Velho Chico. Aqui o capitalismo foi devorado e regurgitado como pacto social. A elite não é eleita: da política poética à ética pacífica, da verve artística ao idílio utópico. Fora fardas! Fora fardos! Fora feudos! Fora fraturas de futuros! Adeus tropas, patrulhas e pelotões! Bem-vindos saraus, tertúlias e folguedos!
VI - NO LADO CERTO DA HISTÓRIA
Em nosso brasão brasilíaco dentro do coração, permanecem o verde-amarelo, tanto quanto o vermelhusco coruscante, rubro encarnado Brasil. Na tela do porvir, o início de um novo destino e tintas do arco-íris. O vizinho ao lado e do outro lado do mundo, nos fortalece, pois nossa rua é parte da pátria, estradas sem fim. Quem nos visita, em lume sublime ilumina-se. Eis que a (r)evolução já aconteceu. E, contamina, penetra, expande, pois a senha de nossa cidadania chama-se: afetividade! Nosso estar no mundo contagia, sutilmente poliniza outras pólis, outros povos, país adentro, Brasil afora.
[Ação integrante do projeto GELEIA GERAL – A Semana de 22 Cem Anos Depois | Coord.: Artur Gomes (RJ)]
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