Fé no Evoé:
Confissões dionisíacas na poética e política
de Artur Gomes
Que o veraz poeta, para aquém do denominado moderno, para além
do já clichê pós-moderno, para quem dos rótulos e taxonomias previstas pelas
literárias teorias, atravessa o pós-pós
de tudo e mesmo o pó da historiografia. Artur Gomes se exibe, ao revés, pré-antigo
(tão dentro quanto fora do chronos)
na atualidade incorrigível de uma poesia dedicada à Gaia (lê-se na dedicatória:
“e a Terra/Mãe/Terra
a musa eterna dos meus estados de surtos dos meus estados de sítio dos meus
estados de cio”). Enquanto bebe, no tempo
cronológico (“tempo de bestas”, “na caretice dos bostas”), as lutas e lutos de
sua época e século (“esse país que atravesso corpo devassado em grito na cara
do silêncio”), inebria-os e subverte-os no tempo imemorial da Terra para fundar
o Aion sem fundo do
instante-em-transe da experiência artística. Por isso, não basta citar, em
cacoete analítico, os tiques nervosos que convêm à crítica (mencionar
modernismos influentes, a geração beat,
a poesia pop, a tropicália...) para
entender sua lírica. Nem seria preciso. Soaria até repetitivo elencar, neste
preâmbulo, as personagens caras a Gomes, forjando-o efeito do esbarro nelas
todas, do encontro com elas, das tramas e transas com obras e corpos do passado
e presente: o poeta já o faz e cumpre a coletânea como a dramaturgia de sua
errância pelo imaginário e pelo inconsciente, os quais derramam sobre o copo do
real e da consciência alter-egos confessos e inventados – tudo o que for
líquido nos vasos sanguíneos do poeta alcooliza o poemário com o híbrido de fogo
fátuo e frios fatos.
Artur
Gomes – assinatura por vir, heteronímica, heteromórfica – assim apresenta em O poeta enquanto coisa suas juras não
mais secretas, mas públicas, ainda púbicas, aos afetos que compõem e decompõem
sua literaturavida. Seus versos são
rascunhos, rasuras e ranhuras a passar a limpo os nexos e os nervos de sua
fatura formal e estilística, deixando sobre a página tanto um rastro de unha
quanto o esmalte dos escritos e vozes que em sua alma avultam e nos dedos
instauram cutículas. Tais intertextos e intratextos, ou ainda, tais hipertextos
insaciáveis se disseminam pela obra na mesma proporção com que se concentram em
cada poema, lado a lado ou embaralhados; falseando nos rebentos líricos as
certidões de batismo e, em poligamia, proliferando as certidões de casamento
com as leituras/releituras de livros, bem como com o folhear de rostos amigos,
ou com o riso e risco do desconhecido, não obstante o postergar de comprovantes
de residência, de pátrias de origem: cada gesto, um tanto Ulisses, desmente
Ítacas, deslinda labirintos (do Minotauro?) ou mesmo fios (de Ariadne?),
teatralizando ad infinitum as
alteridades que servem como impressão digital provisória e polimórfica para
alguma identidade fluida, fragmentada, ao rés da fantasia. Mas nada disso seria
possível – nenhuma conversa com livros, nenhum sexo com as líricas de um outro
e de uma outra – seria concreto sem a lascívia uma vez mais dionisíaca de um
cérebro em gozo sináptico, em psiké-análise,
em psiké-catálise, em psiké-catábase: esta que põe no divã do
poeta as divas Oxum e Afrodite atravessadas, fosse a sala do analista também um
templo pagão ou uma ilha de Lesbos, de modo que Artur construa entre sua cama e
seu karma de vate uma Igreja imoral/amoral do Reino de Zeus. E dos muitos Eus
que exilam hóstias e comungam com o jamais fixo e intransigente credo.
Esta, a sacralização do profano e do erótico, ou a profanação
do sagrado enquanto humano, do poeta enquanto coisa (“o amor mesmo quando
profano / tem muito mais de sagrado”): filho de um deus com uma mortal,
Dionísio dança na recorrência da palavra “vinho” no livro, a exemplo dos
versos: “aqui / a poesia
pulsa / na veia / no vinho”; “por
vinho tinto e poesia”; “ela tem sede de vinho / nas madrugadas dos
bares”; “o vinho do tempo na boca”; “em nossas bocas tinto – vinho”; “beijo tua
boca ainda suja / do vinho que sobrou”; “me consagro teu amante / pelos
vinhedos de Baco / no ápice sagrado / da su-real pornofonia”. A embriaguez dos
significantes e dos significados é a que tanto forja imagens insólitas (como a
de um “céu de estanho” ou como em “ela mastiga meus ponteiros”) quanto a que
costura melodias bem trabalhadas entre vogais, consoantes ( “entre paredes
pedras facas de dois gumes / nos parreirais depois da lua), ratificando a inteligência
verbal (a logopeia) de Artur Gomes
dobrada em melopeia (música) e fanopeia (imagética).Visualidade
provocada, a saber, não só pelas imagens significadas pelos significantes, mas
visualidade ou imagem do próprio significante, o qual, dentro de si, dá à luz
significâncias outras (“EuGênio Andrade”, “Afro-dite, “BolivariAndo”,
“eletriCidade”), pois Artur Gomes – nesta “pornofonia” – é mestre na criação de
neologismos (em tudo se vê uma “carNavalha”).
Não apenas o corpo do homem, da mulher, se sensualiza e se
sexualiza sob a força cósmica de Eros. É o poema mesmo que, em O poeta enquanto coisa, é corpo
sensualizado, sexualizado, da mesma maneira que a cidade, o mundo, os tempos e
o Tempo são Eros, vez que a palavra é
pele e poro (duas palavras aliterantes e frequentes em Artur Gomes). Nessa
porosidade, o poeta se entende permeável a coisas e pessoas (a pessoas já
misturadas às coisas, a pessoas já coisas): “por entre poros entre pelos /
minhas unhas tuas costas”. Também por isso, por essa poesia de tamanho contato,
fricção, a relação com a língua se confirma erotizada e – vale dizer – tanto a
língua física quanto a verbal, o que equivale a dizer que escrita e oralidade
se reencontram no poeta: a sofisticação da escritura literária não perde (pelo
contrário, potencializa) a dimensão primigênia do poeta como cantor, como ator
“na divina língua
de Baco”, a qual se exalta mediante a recorrência também da palavra “boca” e da
palavra “coxa”: uma é a que beija, lambe, morde e degusta; outra é a beijada, a
lambida, a mordida, a degustada. Ambas em rima toante também entoam ritmos e
ritos profanos-sagrados:
como se o tocasse
o reconhecesse em cada verso
cada palavra que sai da boca
como um canto bíblico
com louvor profano
No meio de tantas referências e reverências, borrões (d)e
assinaturas (como as de Mário de Andrade, Drummond, Torquato Neto, Rimbaud,
Mallarmé, Tanussi Cardoso, Tchello d’Barros, Jiddu Saldanha, Ronaldo Werneck,
Reinaldo Valinho Alvarez, Reinaldo Jardim, deuses e deusas gregas, orixás), o
“anjo torto” de Artur Gomes não sopra no livro Manoel de Barros ou James Joyce,
escritores também engenhosos e que se vale de muitos ilogismos ou neologismos.
Todavia, O poeta enquanto coisa não
deixa, na qualidade de título de livro, de repercutir o Retrato do artista quando coisa (de Barros) e o Retrato do artista quando jovem (de
Joyce). Do mesmo modo, não havendo
menção (ao menos, explícita e intencional), ao “Teatro Oficina” de José Celso
Martinez Corrêa, a dimensão orgiástica da arte e a reunião – não menos
sacro-promíscua – de mitos gregos e africanos, a assimilação pela cultura
ocidental de outras culturas, aparece em Artur Gomes nesta, quiçá, Poesia Oficina. A relação gozosa e
experimental com que a palavra se faz poema e se teatraliza faz de seus livros
um grande laboratório da língua, do corpo e da cultura, com repercussões
nitidamente políticas.
Se
Pantanal é o corpo poético e o poema experimental, de aparente falta de lógica,
lembrando o discurso infantil, no Manoel de Barros do Retrato do artista quando coisa, a urbe é o corpo prenhe de
sexualidade e sensualidade em Artur Gomes, nos supostos ilogismos do discurso adulto
que se vê fragmentado e devorado por Eros
e Thanatos, e no qual a relação
sujeito-objeto já não dá conta quando o humano se vê coisa (não mais agente ou paciente, voz ativa ou passiva: talvez,
as duas ao mesmo tempo). Como no Pantanal de Barros, a linguagem de Gomes é
lamacenta, cheia de líquidos e delírios: a seiva se expande e se intensifica
com (ou se troca por) suor e sêmen.
Lama, agora, é a cama: o mangue ou o pantaneiro é a cama de Artur onde dormem,
acordam, sonham, gozam e ardem todos os corpos (humanos e não humanos) aqui já
citados e dispostos nos lençóis, colchas e fronhas da página.
Por
outro lado, temos na trajetória literária de James Joyce, a intertextualidade
com Ulisses de Homero. Artur Gomes ouve o canto da sereia em sua cama, livro,
divã, e talvez do inconsciente escute a voz de um “artista quando jovem”, vinda
de Joyce. Nesta, a personagem protagonista Stephen Dedalus, aquele que será adiante o anti-herói de Ulysses, diz à sua mãe que não poderá
seguir a vocação de padre. Ele descobriu uma nova e grandiosa missão em sua
vida: a de criar uma nova e poderosa mitologia para o povo irlandês. O
romance autobiográfico de Joyce narra a infância de Dedalus (máscara de Joyce),
personagem que vai aparecer novamente em Ulysses.
A vida do pequeno Dedalus é marcada pela religiosidade da mãe. Ela quer que o
filho siga a carreira eclesiástica. Vários padres fazem parte da vida de
Dedalus e vão moldando sua consciência. O momento de virada na vida da
personagem principal se dá no momento em que ele escuta um horrível sermão
feito por um padre sobre o inferno que o deixa muito impressionado. Dedalus
passa a viver como um carola seguindo à risca todos os jejuns e mandamentos da
igreja católica. Nesse momento, ele até se sente como um futuro padre. Com a
sequência do romance, vemos o jovem Dedalus passar de uma fase religiosa para
uma de sensualidade. Sente-se cada vez mais obcecado com a ideia da confissão.
Ele então confessa a um padre todos os pecados sensuais que pratica. Abandona
definitivamente a convocação de ser padre e passa a se interessar por ideias
artísticas e estéticas. Dedalus abandona a carreira de padre mas não a fé.
Assim, Artur Gomes se obstina pela ideia de confissão, mas de uma confissão
dionisíaca. Primeiro, fazendo suas Juras
Secretas, suas confidências sensuais, sexuais, eróticas, fulinaímicas. Em
suma, suas sagaranagens (há algo de
Joyce em Guimarães Rosa, ou vice-versa; no Rosa que há em Artur Gomes, no sagarana dos três). Agora, em O poeta enquanto coisa, arriscando-se a
abandonar todo credo político-religioso paralisante, move-se – avesso ao
dogmático – no sentido de dançar o mitopoético, o dionisíaco. Daí, uma Igreja
Universal do Reino Zeus faça todo sentido na cosmogonia e teogonia de Artur
Gomes. Em primeiro lugar, como deboche diante de quaisquer fundamentalismos. Em
segundo lugar, como denúncia do que um Reino de Deus pode roubar do político o
vigor do poético, preferindo um louvor a Dionísio a um Deus que não sabe
dançar, que não sabe gozar, na liturgia de uma poesia que roga
por um poema
que desconcerte
entorte
desconforte
arrombe a porta
dos céus
da tua boca
arranhe os dentes
da loba
arrebanhe os cordeiros
no pasto
e lhes ensine
a subverter
as ordens do pastor
assumo o risco
não sou demo
nem corisco
eu sou cantor
Oxossi é quem me leva
Ogum é quem me manda
Oxum é quem me guarda
eu sou o que invoca
o que provoca
e incorpora
desconcentra
desconforta
desconstrói
e desconcerta
eu sou o que interpreta representa
o que inventa
e desafora
o Anjo Torto
graças a Zeus
a pedra e ao Machado de Xangô
a Capitã do Mato Caipora
me xinga de poeta enganador
mal sabe ela
que eu sou da reza
que o homem que se preza
nunca se escraviza
com chicote de feitor
*Igor Fagundes é poeta, ensaísta, doutor em Poética e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor, dentre outros, de pensamento dança (2018) e Poética na incorporação (2016).
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