segunda-feira, 18 de março de 2024

Mútiplas Poéticas



 

ditadura

 

 

ditadura

palavra dura

tão dura

que dói



 Cabresto


 

me fiz feliz feito besta

feito besta andarilhei

de repente, parei.

de soslaio, bestas-feras

me armavam um cabresto.

sorri e disse

só to feliz feito besta

porque de besta me fiz feliz

e não preciso de cabresto


se fizesse da prosa, poesia

se fizesse da poesia, prosa

em vinte e quatro quadros

a arte da vida projetaria

e me calaria


cut-up

 

hoje assaltei Cabral

tesourei Edgard

mastiguei Oswald

nada sobrou

palavra!


passo a passo

passo

carros, árvores

passo

passos apressados

passo

jornais, revistas

passo

manifestantes

passo

tela de TV

passo

glórias antigas

passo

passo errado

passo

autoridades

passo

passo em falso

passo

amigos do rei

passo

passo extremo

passo

gente armada

passo

passo errado

passo

passam mentiras

passo

ódio e raiva

passo

passo a passo

passo

carros, árvores

passo

pássaros voam


Cesar Augusto de Carvalho

 Curto Circuito

Editora Patuá - 2019


POEMAS

 

1.

daqui

do meu ventre

uma língua selvagem:

a ânsia furiosa de nomear

o mundo e de dizer:

    [amo-te em toda a minha combustão].

 

2.

acordam as vielas num

olhar de chão,

os lábios

presos aos dedos que matam:

é preciso dizer não,

deixar cair,

absorver o vento na sua

dimensão maior

 

a dimensão que as palavras

cristalizam [ou que não cristalizam

ou que deixam cair num

olhar de vácuo

 

as palavras os signos que

representam apenas o que

posso deixar sentir,

o que o meu corpo sugere,

 

o que o meu corpo ama,

o que os meus dedos

encobrem num mistério de folhas.

 

 

3.

 

porque a palavra não é mais

porque se quebrou o sentido

da nossa visão

 

toda a vertigem / todas as palavras

são um chamamento para

o lugar dos mortos.

 

 

4.

 

nada fica por detrás

tudo é claro, tudo

se alimenta no latido

dos cães.

 

 

 

5.

 

para Rainer Maria Rilke

 

não percebemos o gato na sua identidade

como também ele não nos percebe na nossa

 

perante a Paisagem,

o gato será apenas um gato, felix silvestris catus,

originário do egipto antigo, animal amado

por homens, mulheres, escritores

 

perante a Paisagem,

o gato tem um olhar livre de palavras

e habita um mundo ainda não nomeado,

sem uma simbólica ou um sentido claro

de existência

 

se, da Paisagem,

um pequeno pássaro voar até ele,

será apenas isso: alimento, nutrição,

algo que possa segurar ou deixar fugir

 

nós, contudo,

chamamos a uma águia-real

o animal mais magnífico dos céus

e chamamos ao nosso desejo de expressão

criatividade e ao que nasce das nossas mãos

linguagem, poesia, literatura

 

e cremos, também,

que a nossa identidade está predeterminada

e que nunca se perde

e que a nossa humanidade se garante

no próprio facto de existirmos

 

contudo,

perante o olhar de nós mesmos,

os mortos da Paisagem observam-nos,

 

[sem uma língua que possa nomear

o espaço aberto à sua volta.

 

Jorge Vicente

 

nota biográfica: Jorge Vicente nasceu em 1974, em Lisboa, e desde cedo se interessou por poesia. Com Mestrado em Ciências Documentais, tem poemas publicados em diversas antologias literárias e revistas. Faz parte da direcção editorial da revista online Incomunidade. Tem cinco livros publicados, sendo o último cavalo que passa devagar (voltad’mar: 2019).

Contacto: jorgevicente.seacarrier@gmail.com

foto: Ozias Filho 


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